Extremismo não existe

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Gostou do título? Eu gostei muito dele. Eu gosto desse título porque ele é QUASE o que as pessoas hoje chamam de “clickbait”, uma “isca de cliques”. Mas não é. Esse título é literalmente o resumo deste texto inteiro, a lição que eu quero que as pessoas tirem dele quando terminarem. Ou antes de terminarem, ainda que prefiro que leiam tudo.

Mas eu entendo porque é que alguém poderia pensar que este texto é uma isca, e isso é porque a ideia de que extremismo não existe parece ridícula, ou parece, dependendo do ângulo que você levar isso, até mesmo muito extremista, ao ponto de gerar resistência em quem a lê.

Talvez você já esteja pescando o caminho que eu quero seguir com essa ideia, porque esse segundo parágrafo teve uma isca de ideia, ainda que não de clique, e essa ideia é que “extremismo” é uma coisa complicadíssima de se entender.

Vamos do começo: “extremismo” é uma palavra, então de certo modo ele existe. Do mesmo jeito que “cogumelo”, “plástico” e “franciscano” são palavras e existem. Só que a diferença é que “cogumelo”, “plástico” e “franciscano” equivalem a coisas e características específicas que nós podemos apontar, enquanto extremismo” é algo que nós só podemos apontar se, ao apontar, nos tivermos com que comparar. Em outras palavras: não existe uma coisa só que nós podemos falar que é “extremismo”, sem necessariamente falarmos, direta ou indiretamente, o que não é “extremismo”.

Você sabe que plástico é plástico por conta própria. Você sabe o que é metal. Você consegue diferenciar um do outro independentemente do outro. Você não diz “ah, este metal não é plástico”, do mesmo jeito que não o compara a carne, tecido ou oxigênio.

Trace uma linha. Ou imagine uma linha. Uma linha reta, de preferência, e com começo e fim. Essa linha terá, necessariamente, dois pontos, um onde ela começou e um onde ela terminou. Agora marque um ponto no centro da linha. Os dois pontos onde a reta começa e termina são, naturalmente, seus extremos. Eles são extremos da própria linha e em relação ao ponto médio.

Agora, se a linha fosse infinita, onde ficaria o meio? Isso é uma pergunta retórica, porque a resposta é: não haveria ponto médio. Também não haveria extremo algum. Mas se eu fizesse um recorte da linha infinita, eu naturalmente criei os dois extremos e posso naturalmente indicar o meio.

Ou seja: extremismo”, assim, nada mais é que a análise de um ponto qualquer de um espectro em relação a outro, dependendo de uma definição de limites específica para determinação desse espectro, que também pode ser tão artificial quanto a própria ideia do extremismo.

Mas é claro que ninguém usa esse termo à toa. Se alguém está apontando um “extremismo”, é exatamente porque se tem um motivo muito forte para isso. Isso acontece porque extremismo” é o termo perfeito que as pessoas usam para que pareçam moderadas e aquilo que não acreditam possa ser considerado um exagero, algo pouco razoável.

Se alguém fala que algo é extremista, normalmente elas implicitamente apontam o que é aceitável (o moderado, que é onde elas estão) e direta ou indiretamente criam uma gradação de aceitabilidade do ponto que estão até o ponto em que está o extremismo ou os extremismos. A vantagem de se fazer isso é que, ao iniciar qualquer conversa com essa nomenclatura, você configura todo o assunto para obedecer a essa regra. Ou seja, você faz quem não concorda com você ter que se defender como se fosse o extremo e você fosse o ponto médio, o razoável.

Existem até algumas vezes em que não existe o ponto médio. Algumas pessoas adoram jogar fora o ponto do meio da linha, mas manter toda a lógica implícita no resto. Desse modo, existe o "ponto razoável" e o "ponto extremista". Nesse sentido, qualquer coisa que não é o que é ideal para o moderado é sempre um pouco mais extremista, até que seja extremista demais.

Isso ocasionalmente acontece por um outro ângulo, em casos mais estranhos, que é quando a pessoa se define por vontade própria como extremista. A lógica é bem parecida, aqui: a pessoa está dizendo que, dentro daquele comportamento específico, há pessoas que podem ser consideradas mais razoáveis em algum sentido. Implicitamente, também, ela pode estar deixando de reconhecer qualquer pessoa que venha depois dela como participante do espectro em questão, deixando mesmo de reconhecer sua existência, talvez por desejar que a ignorassem, ou simplesmente por desconhecimento. Quem sabe, se soubesse, a pessoa em questão se veria apontando a outra pessoa como extremista acima de seu extremo. Vai saber.

Enfim, vamos colocar isso em termos mais práticos. Eu pensei em falar de política, mas eu conheço vocês e sei que isso vai virar uma bagunça. Eu sei que todos os exemplos que eu poderia usar são politizáveis, incluindo, no caso, o que eu vou usar, mas este é excelente, então seguirei com ele: alimentação.

O que é um extremista, no âmbito de alimentação? Para isso, temos que ter um ponto de partida. O que é um moderado, no âmbito de alimentação?

Considerando o ponto de vista do ser humano médio na cultura ocidental, trata-se de um onívoro. Um indivíduo que come tudo naquela bela pirâmide de alimentos que nós vimos na escola, quando éramos crianças. Ele come de tudo um pouco, e com moderação.

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(Fonte da imagem: https://www.todamateria.com.br/piramide-alimentar/ )

O que é um extremista, nesse contexto?

Essa é outra armadilha argumentativa, na verdade, para mostrar como o buraco de qualquer discussão de extremismo é sempre mais embaixo: eu defini dois critérios claros dentro do que é um moderado, e há ao menos um terceiro escondido.

O primeiro critério é o de quantidade. Se o moderado é o que come “de tudo um pouco”, extremistas seriam aqueles que não comem algum ou alguns tipos de alimentos da pirâmide e/ou comem mais de outros, como carnívoros incontroláveis de um lado e veganos de outros (com vegetarianos existindo no meio termo entre onívoros e veganos).

O segundo critério é de tipos de alimentos. E nesse ponto mora uma armadilha dentro da armadilha, porque já começamos supondo que o meio da linha é a pessoa que come tudo. Se a pessoa come “tudo”, o extremista é quem come “não tudo”. Ou seja, qualquer coisa a menos é extremista. É o típico caso de quem jogou fora o ponto do meio da linha.

E nós ainda podemos considerar o terceiro critério que foi o tendenciamento criado pela apresentação da pirâmide, pois ela ditou antes de tudo o que exatamente é aceitável como alimento. Se consideramos o que está na pirâmide como o ponto do meio, alguém que adicionar outros tipos de alimento, ou que ampliar algum dos grupos, pode ser considerado um extremista. Ou seja, nesse ângulo, por um lado temos o extremista como a pessoa que só vai comer um tipo de item de cada um da pirâmide, e do outro lado, o que vai não apenas comer todo tipo, mas adicionar também carne de cachorro, cavalo e, se quisermos ser especialmente exagerados no nosso exemplo, carne humana.

Ou seja, nós já chegamos ao ponto em que mesmo supondo uma alimentação onívora, é difícil definir com precisão o que é um extremista. E se mudarmos o ponto de vista? E se considerarmos um vegetariano como o ponto médio da escala?

Se um vegetariano se considerar como o meio da escala, um onívoro pode ser um extremo e um vegano, o outro. Ou ainda, ele pode considerar extremista quem é majoritariamente carnívoro e colocar o onívoro como um meio termo até lá. Do mesmo modo, ele pode tentar diferenciar o veganismo, considerando uma linha focada em alimentação e outra focada em fatores a mais, incluindo consumo consciente como um todo (roupas e cosméticos veganos, por exemplo). Assim, poderia colocar o “vegano alimentar” (sim, eu tenho consciência de que estou inventando uma nomenclatura), como um meio-termo entre o “vegano completo” e o vegetariano.

Imagine só como seria a visão de um vegano se chamando de moderado. Interessante, não?

Então já determinamos que é difícil delimitar extremismo, certo? Que ele existe unicamente na cabeça de quem o aponta e de quem concorda com esse que aponta. Agora, lembre-se também que muitas vezes não é apenas uma linha que está em jogo. Se você adicionar mais uma linha cruzando a primeira, com outro aspecto, você cria uma gama ainda maior de extremismos. Normalmente, inclusive, é isso que acontece, como no famoso diagrama de coordenadas políticas, e obviamente, mesmo com mais detalhes, tendenciamentos e problemas são inevitáveis.

Por isso, se você ver alguém falando de extremismo, entenda que a pessoa fala isso de um universo de entendimento específico. A discordância que existir com ela, geralmente, é de pessoas que tem outro universo de entendimento. E assim, chegamos ao que é possivelmente o ponto mais importante dessa conversa toda:

Tudo isso, no fim das contas, todos esses pensamentos e nomenclaturas, toda a “moderação” e “extremismo”, serve unicamente como uma densa cortina de fumaça que nos faz esquecer que o extremista não necessariamente é ruim e o moderado não necessariamente é bom.

Esse é o principal truque da conversa inteira. Afinal, por que raios é útil para um suposto “moderado” se identificar assim, declaramente ou não? Porque entendemos, culturalmente, que moderação é bom, simplesmente porque é aceitável e porque é "normal". 

Eu já falei, mas sinto que é preciso repetir: nós fomos treinados a acreditar que moderação é algo moral, respeitável e responsável, porque o “extremista” sempre puxa a ideia de “exagero”, e qualquer momento em que algo parecer exagerado, parece errado. O “certo” nunca parece exagerado, mas o “errado” não precisa de muito.

“Até água em exagero pode matar”, dirão alguns. “O remédio e o veneno dependem unicamente da dose”, dirão outros, concordando. Mas nenhum desses jamais dirá isso sobre valores que concordem, sobre o respeito que merecem e sobre a segurança que querem sentir. Já imaginou? “Nossa, estou me sentindo tão seguro! É melhor eu não me sentir tão seguro, se não vou ficar confortável demais. Acho que vou procurar uma rua perigosa para adicionar um pouco de insegurança em minha vida.”

Não existe moralidade implícita generalizável. Não é possível afirmar que o extremismo é sempre ruim e a moderação sempre é boa, exceto se você só forçar cenários em que as opções de configurem assim. E a vida prática nunca é assim.

Criticar o extremismo como um exagero é uma armadilha. Se você cair nessa armadilha, é o caminho certo para estar achando que pode ficar no meio do caminho, no ponto moderado, mesmo entre questões indiscutíveis. E se você está falando “não existem questões indiscutíveis”, analise o que você nunca faria ou aceitaria em seu código moral, e veja o quanto você negociaria dessa mesma lógica.

Já imaginou qual é o “ponto moderado” entre "muito genocídio" e "nenhum genocídio"? Já imaginou isso? Imagine-se falando algo como: “Não, calma lá, também não podemos ser extremistas, não é mesmo? Tudo bem que muito genocídio é ruim, mas já imaginou ficarmos sem NENHUM? QUE ABSURDO!”

É um exemplo ridículo, não? Mas é a que se resume muitos discursos do suposto “anti-extremismo”, da “moderação”, especialmente quando quem se acha “moderado” não enxerga que outros podem vê-lo como extremista e vice-versa.

Na próxima vez que alguém vir com esse papo, pense em sua religião. Se você não tiver religião, pense em alguma filosofia que segue, ou mesmo nas leis que você respeitar, escritas ou não. Não existe Messias ou profeta ou entidade ou filosofia ou lei que não soe extremista para alguém, especialmente fora dela. E não existe “meio crime” para a lei, ainda que exista crime maior ou menor. Não existe “meio mandamento religioso”, mesmo com toda a interpretação do mundo.

Não sei para você, mas para mim, entre “Não matarás” e “Matarás”, o meio-termo parece mais com a segunda opção do que com a primeira, mesmo que não queira parecer assim.