Que punição você se daria?

Você já parou para pensar em como seria se você cometesse um crime? Eu já. Já vi filmes de ação e suspense o suficiente para imaginar como executar um crime e nas maneiras de fugir ou de ocultar provas, ainda que não pretenda realizar qualquer crime. É uma linha de raciocínio emocionante e um exercício mental inegavelmente divertido.

Te faço outra pergunta: se você cometesse um crime, que punição você se daria?

Essa é uma que nós não fazemos com frequência o suficiente, ou talvez nunca o façamos: se você cometesse um crime, que punição você acha que seria justa para você? Como você classificaria seu crime? Você utilizaria absolutos ou preferiria uma análise das nuances do próprio crime?

Uma resposta que pode surgir como reflexo é a simples recusa a responder — afinal, para que se preocupar com isso, se você não vai cometer um crime? Você não é um criminoso e não será. Mas eu peço que faça o exercício. Na ocasião de uma punição por algum crime, que punições você receberia?

Invariavelmente, o pensamento que se segue não é isento de alguma emocionalidade. A ideia de que podemos perder dinheiro ou liberdade como punição do crime — e convenhamos que dinheiro e liberdade estão diretamente relacionados — é algo que mexe com instintos básicos de sobrevivência. Podemos nos julgar racionais, mas nessa hora nossos sentimentos invariavelmente entram em jogo.

Pode ser, também nesse momento, que até mesmo as punições previstas em constituição soem excessivas. Você tem uma vida, tem uma família para sustentar. Trinta anos de cadeia por homicídio soa excessivo. Dez anos por roubo acabaria com seus planos. Cinco anos por furto qualificado é demais para você.

Você, nesse momento, pode achar que as leis estão erradas, ou que não consideram tudo que você é e todos seus lados bons. Mesmo que julgamentos possam amenizar a pena, o fato de que ela existe ainda é um grande problema para você. Nesse momento, considerar que a punição é justa não é impossível. Mas é algo bem difícil de lidar.

Enquanto fazemos esse exercício talvez sua mente racional tenha levantado um ponto: é por isso que a lei existe de maneira externa a nós, e por isso que ela é flexível. A lei é necessária para a ordem, apesar de nossos sentimentos. Dura lex, sed lex até mesmo quando o “dura” nos afeta, certo?
 Certo.

Agora, e se quem cometeu o furto que eu mencionei acima fosse outra pessoa? A resposta imediata, especialmente depois desse momento de razão, é que o criminoso seja punido de acordo com a lei, certo?

Bom, não é o que vemos com frequência.

Na hora que vamos julgar o outro, o mesmo sentimento que nos deixou míopes para nos julgarmos também toma conta. Toda a flexibilidade que achamos que merecíamos, todo o julgamento brando que desejávamos passa a ser descartável. Até as leis podem parecer fáceis demais, brandas, e os absolutos passam a imperar frente a qualquer relativização. Quanto mais nos importamos com o crime, ou com as vítimas, ou quanto mais desprezamos quem o perpetrou, mais severo é o nosso julgamento.

Qual é a punição que você daria para alguém que furtou? Um a cinco anos? Mais? Quando começamos a fazer essas perguntas que vemos que a sentença de morte começa de baixo, sem precisar de muito. Para algumas pessoas, mais do que a punição prevista na lei, a amputação da mão do ladrão é válida. Para outros até sua morte.

Você se daria a mesma punição que a que você deu ao ladrão?

“Não sou ladrão, então não importa”, diz sua consciência, ou quem sabe você, talvez até em voz alta. Tudo bem, vamos para outro exemplo.

Sabia que eu já violei a lei algumas vezes? Verdade. Estou aqui falando, mas é fato que já levei multas de trânsito. Já andei com o carro fora do rodízio e certa vez passei um pouco acima da velocidade em uma lombada eletrônica.

Qual punição você se daria por excesso de velocidade? E por parar em fila dupla, ou em um local proibido? E por furar um sinal vermelho?

Não escolhi multas de trânsito como exemplo à toa. Além de ser o crime provavelmente mais comum da população — exceto talvez por jogar lixo, ainda que esse raramente seja motivo de punição — este já deu o que falar, com inúmeras pessoas falando sobre a famosa “indústria da multa”, geralmente criticando os métodos em que multas são aplicados e bem pouco do mérito ou falta de mérito de quem reclamou da multa.

Você pode achar que é injusto que existam muitas multas, especialmente as que te afetam. Talvez você até passe os pontos de sua carteira para outra pessoa, puramente para que não tenha o trabalho de refazê-la, se a perder. Talvez você continue rodando por aí com uma carteira vencida. Acontece. Como você sente que isso é injusto, vai culpar “os corruptos”, a “indústria da multa” e vai continuar a correr naquela avenida, afinal “aqui não tem radar, então não levo multa”.

Mas quando você vê aquele carro te fechar, ou cruzar um semáforo vermelho, ou fazer uma conversão proibida e isso te afeta, você quer que ele seja punido. Talvez ele tenha feito qualquer uma dessas coisas porque “não tinha radar.” Mas subitamente elas são mais crime do que para eram para você. E agora?

Não precisa responder, pois o ponto desta conversa não é sobre multas, mas sobre punições.

Poderíamos falar sobre o “gato” para roubar TV à cabo e o roubo aos cofres públicos dos políticos, mas vamos direto a um ponto maior: se você matasse alguém, que punição você se daria?

Pense em todos os motivos. Poderia ser um crime passional, ou um crime de ódio, poderia ser por lucro ou poderia ser um momento de loucura. O que você faria nessas situações? Como você escolheria sua punição?

Eu tenho um palpite: você nunca escolheria pena de morte para você mesmo.

Talvez você tenha pensado que só mataria em legítima defesa, e isso justificaria uma punição mais branda, mas é certo que a maioria das pessoas não desejaria a pena de morte em nenhum dos outros casos, nem que cometessem o pior dos massacres.

Não precisamos ir muito longe para ver que o oposto não é real. Não precisamos ver as sugestões de morte de todo tipo para criminosos de todo tipo, elas estão em nosso imaginário e em prática em vários países.

Quando alguém questiona ou efetivamente fala contra alguma punição desse tipo, porém, a acusação que vem é que a pessoa está “defendendo bandidos”. “Diretos Humanos”, nesse momento, surgem como um tipo de escudo à criminalidade, e seus defensores se tornam a escória, como se fosse deles a responsabilidade pela continuidade da criminalidade. Nesse momento, surgem os bordões como “leva pra casa”, criados por perpetradores de pensamentos rasos e repetidos por multidões com as mesmas características. 

(Inclusive, talvez você tenha pensado em me dizer isso enquanto lia esse texto e talvez tenha se sentido ofendido(a) com minha suposição sobre seu nível de raciocínio. Não peço desculpas, mas peço paciência para ler até o final, já que ele não está muito longe. Se você efetivamente diz não agir com base em seus sentimentos e instintos, usará sua razão para ler e, se assim desejar, argumentar contra mim.)

Quando você fala de um crime e questiona a punição que o criminoso sofreu, ou o tratamento que ele passou até que a punição fosse exercida, nunca foi sobre ele. Nunca foi sobre “o que eles merecem”, mas sim “o que eu mereceria, se fosse eu?”

Os direitos humanos não protegem os bandidos. Eles protegem os humanos. O erro na crítica aos direitos humanos nesse contexto é a insistência de que o crime remove o estado de cidadania ou humanidade de um indivíduo. Um criminoso é tão humano quanto você, por mais que cometa um crime contra a humanidade. Um criminoso é tão humano quanto você, por mais que você não queira ou pense que ele não mereça.

Atacar a manutenção dos direitos humanos é facilitar que a qualquer momento possa ser a nossa própria cidadania ou humanidade que é colocada em cheque, e ela não estará protegida, pois até então não era protegida a daqueles que estavam a um ato de distância de nós.

A partir do momento em que você aceita leis para serem obedecidas, deve entender que elas são válidas a todos. A exceção não pode existir, caso contrário não existem leis. Se a exceção é proteger quem tem mais dinheiro, as leis punem quem não tem. Se a exceção é proteger quem tem poder, as leis punem quem não tem.

O “cidadão de bem” só é “de bem” por conta de circunstâncias que podem ser facilmente mudadas, ou simplesmente porque não faz questão de que a punição que lhe é devida seja efetivamente executada.

Você pode dizer que nunca cometerá qualquer crime, e talvez não cometa, mesmo. Mas já pensou o que aconteceria se transformassem algo que você faz hoje em crime?

Nesse caso, que punição você se daria?