Eles vão ver só

Eu nunca encontrei alguém que estivesse plenamente satisfeito com o mundo. Eu nunca estive plenamente satisfeito com o mundo, e imagino que nunca estarei. Junto disso, às vezes nós ficamos tão insatisfeitos com o que julgamos que seja um absurdo acontecendo ao nosso redor, que isso nos gera uma revolta.

Quem nunca sonhou com um mundo que visse tudo como enxergamos, julgando que nossa solução — para tudo, ou ao menos para algum aspecto — fosse a fórmula mágica que faltava para resolver tudo? Quem nunca viu as hipocrisias e ignorâncias do mundo e pensou como seria se elas fossem diferentes?

Só que nem sempre nossas pretensões viram realidade, tanto por serem alterações além de nosso poder, quanto por não podermos fazer — ao menos não com um passe de mágica — que todos concordem com nossa visão. Nossas expectativas para o mundo se tornam frustrações, e nossa revolta não necessariamente some.

E sempre há o “outro”. Seja a outra ideia, o opositor à nossa, o semelhante que não age como seria conveniente a nós que ele agisse ou, no fim das contas, a realidade que não corresponde à nossa visão. Todos eles são agentes do absurdo que vemos no mundo, de um jeito ou de outro, e muitos de nós tentam educá-los e combatê-los para, através deles, mudar o absurdo do mundo. Mas essas lutas também podem ser infrutíferas — ou, ao menos, nos parecerem infrutíferas.

Nessas horas, quando vemos algo absurdo acontecendo e nos sentimentos os únicos iluminados — ou, quem sabe, parte de uma minoria iluminada — mas não há nada que possamos fazer, é quando surge uma vontade venenosa: nós estamos tão certos de que o outro lado está errado, que entendemos que o único caminho para eles é a ruína. Ou eles se arruinarão, ou seus apoiadores se arruinarão, ou eles arruinarão as circunstâncias ou práticas e métodos ou as ideias ou até o próprio tecido da realidade, de tão cheias de ruína que são suas ideias.

“Eles vão ver só”, nós pensamos, olhando para baixo do topo da torre intocável de nossa certeza para as ruínas imaginárias que, sabemos muito bem, invariavelmente surgirão como fruto das ações de que discordamos. É claro que nós seremos intocados pela desgraça certa ou, se não formos intocados, ao menos a desgraça sempre será menor (ainda que terrível) do que a satisfação de, no meio da lama, podermos apontar o dedo na cara daqueles de quem discordamos e anunciarmos “eu te disse!”

Isso não é um pensamento incomum. O impulso de estar certo é algo básico à maioria de nós, especialmente quando o assunto de que tratamos envolve muita emoção, como é o caso de política. Por isso mesmo, é sempre muito tentador seguir com esse comportamento. 

A recompensa é sempre grande: no caso de desgraça, podemos falar que estávamos certos, que os outros estavam errados, nos convencer que nossa intromissão ignorada no assunto era a fórmula do sucesso não reconhecida e, no meio de todo o processo, ainda podemos nos isentar completamente de qualquer responsabilidade pelo que aconteceu! Fantástico, não?

Se a desgraça prevista não se cumprir, nós não declaramos derrota. Ah, não, certamente que não — nós encontraremos ainda os pontos de discordância, pois mesmo que desse certo, não foi o que queríamos, e o que queríamos invariavelmente seria superior à realidade. A incapacidade de alcance de uma expectativa de sucesso que nós definirmos se torna a prova cabal de nossa certeza, e certamente poderemos apontar algo para falar “viu, eu não disse? Agora eles estão vendo!”

Não importa o cenário, se nos convencemos que “eles vão ver só”, para nós, eles sempre “vão ver”, até quando nós “perdemos”. Nós nos damos a licença moral de, ao não termos culpa de nada, podermos nos afastar ideologicamente para sempre garantir nossa superioridade moral.

Só que isso é um problema não só pela isenção óbvia de nossas ações, mas pelo fato de que se o mundo fez uma decisão por pensar diferente, é bem provável que a lição que o mundo aprenda — se é que vai aprender alguma — também vai seguir em uma lógica diferente da nossa.

Veja, as pessoas podem nem mesmo identificar a falha em seus planos. Ele pode ser a única maneira que tinham de fazer algo. Ou pode ser que elas realmente “vejam só” alguma coisa, mas ainda não será o nosso “ver só”. Se virem, elas vão conseguir uma justificativa própria para isso, do mesmo jeito que nós conseguimos uma justificativa para as nossas próprias ideias e percepções.

Especialmente se os outros já conhecem a nossa visão e têm uma resposta emocional a ela, elas continuarão na lógica delas — e nós na nossa. Se o outro tiver se convencido de que está tudo bem, contra qualquer evidência do contrário, ele acreditará que tudo está bem. O mesmo, claro, ocorre com o oposto — não há realidade alguma que sobreviva a um pessimista, do mesmo modo que não há otimismo que não amenize qualquer desgraça.

Assim, por mais que dê vontade, às vezes, de entregar o mundo à própria destruição, ao que é ilógico e absurdo e que efetivamente nos levará como um todo ao apocalipse, apenas para que possamos dizer com certeza que tudo aconteceu porque fomos ignorados, pense que é só quem pensa de um jeito que poderá lutar por aquele jeito, porque quem não enxerga a lama não enxergará mesmo que esteja nadando nela de braçada. E se você se ausentar de fazer algo pelo que concorda, tem uma pessoa a menos lutando por aquele jeito.

Torcer contra ou se ausentar, no fim das contas, prejudica a todos e a você, e cada um vai achar uma explicação própria para o problema, e achar erro nas soluções, e achar soluções nos erros.

O pensamento do “eles vão ver só” tem três erros muito básicos: o primeiro é a suposição que “eles” vão ver o que está acontecendo da mesma maneira que você. O segundo é a suposição de que eles sempre vão entender os problemas do resultado como fruto das próprias ações. O terceiro é supor que “eles” existem separadamente de nós e que a ruína nunca vai nos afetar. 

Esse pensamento simultaneamente superestima as capacidades de percepção e raciocínio do outro e subestima a capacidade de abstração e de orgulho, ao mesmo tempo que, ignorantemente, nos diz que eles são extremamente diferentes de nós e orgulhosamente que nós estamos necessariamente sempre certos.

A lição básica é esta: eles não são diferentes de nós. Eles somos nós. Eles podem pensar diferente de nós, ter aparência diferente ou outros hábitos, mas eles também têm orgulho de suas convicções, eles também têm limitações e é claro que eles também querem estar certos.

Se você acha que eles são inalcançáveis e que tudo que fazem levará todos à ruína, saiba que é provável que pensem o mesmo de você, com a exceção de que, se você parou, nada garante que o outro lado parou também. E é nesse momento que o orgulho mais paralisa — e é nesse momento que aqueles que tem algum poder de mudança vão correr atrás dos próprios interesses, podendo ser apoiados por quem está fazendo alguma coisa, e é nessa hora que o que você previa no “eles vão ver só” ataca, e não são só “eles” que vão ver.

Lembre-se: oposição de ideias sempre vai existir, dos assuntos mais simples aos mais complexos. E nisso, quanto mais sem cara é seu inimigo, quanto mais “massa de manobra” e quanto mais “inimigo”, maior a chance de que você seja igualzinho a ele. Nenhuma “massa de manobra” acha que é “massa de manobra”, mesmo quando é manobrada em direção a outra massa que pensa que é muito diferente. 

E lembre-se que a destruição que a ignorância/imoralidade/má-vontade/etc. do outro lado promover também é sempre sua.