Quanto mais medo, menos crowd

“O medo é assassino da mente. O medo é a pequena morte que traz total obliteração. Enfrentarei meus medos, permitirei que passem sobre mim e através de mim, e quando tiverem passado farei com que o olho interior enxergue seu caminho. Onde o medo esteve não restará nada. Somente eu permanecerei.” — Frank Herbert, “Duna”

(Texto originalmente publicado no Medium.)

No meu dia-a-dia, eu trabalho com publicidade, especialmente em redes sociais. Isso me permite analisar todo tipo de interação humana e, como boa parte do que vejo é no Facebook, muitas vezes consigo ver todos os espectros da ação humana em um espaço consideravelmente restrito. Existem, claro, aqueles que usam a rede social para mostrarem apenas seu melhor, mas para outros ela é uma máscara de anonimato e de liberdade. Nenhuma novidade aqui, né?

Um dos clientes que atendo é um destino turístico. É um destino com muito o que se fazer, incluindo praias. Foi em um post sobre uma de suas praias de surf que tive, recentemente, uma realização importante.

A imagem compartilhada no Facebook pela página do meu cliente mostrava um grupo de surfistas e convidava à experiência que aquelas praias ofereciam. Era um conteúdo promocional comum que, impulsionado por um investimento em mídia paga na plataforma, foi exibido para muitos usuários. Só que nem todos receberam bem aquela imagem.

Para muitos usuários, a praia era apenas motivo de medo. Temiam ataques de tubarões, chegando até mesmo a censurar a página, como se fosse irresponsável do destino recomendar praias “infestadas” (palavras deles, não minhas). Alguns eram mais educados, mas a maioria dos que tinham medo chegavam a ser agressivos.

Não era surpresa alguma. Quando você lida com turismo, especialmente com países que estão fora do grande circuito, você invariavelmente vai lidar com bastante preconceito, que se manifesta de maneiras diversas. Como tudo que é diferente do que as pessoas estão acostumadas, reações automáticas de rejeição e medo são comuns, e nesse momento reina o preconceito, geralmente disfarçado de conhecimento. Não era a primeira vez que ouvimos reclamações sobre tubarões, e não será a última. Os tubarões, aliás, não inexistem, mas o lugar oferece tanto perigo quanto, digamos, algumas praias brasileiras.

Só que, para alguns usuários, a reação de rejeição se tornava agressividade rapidamente. Piadas de mau gosto se alternavam a insultos e insinuações pejorativas sobre a índole dos moradores do país e de seu papel no mundo. Era um pouco mais virulento que o habitual, tanto que muitos comentários nem haviam sido respondidos e haviam sido ocultados para minimizar o estrago — com o tempo, você identifica com facilidade o usuários que quer e o que não quer uma resposta, e para muitas páginas compensa mais ocultar o agressor do que lhe dar o gosto de uma resposta (e, assim, de um mínimo de exposição da marca em questão).

No meio dos comentários, havia um grupo de surfistas que parecia se divertir. Deles vinham tanto críticas quanto piadas. Em sua maioria, comentavam frases que claramente exageravam os perigos, com indicações de humor implícitas. Um deles, menos sutil, sugeria que fosse bom que esses comentários existissem, incentivando outros surfistas a reproduzirem mais comentários que incentivassem o medo. Outro concordava, e fazia sua parte. E então eu vi uma frase que não esquecerei tão cedo: “Quanto mais medo, menos crowd.”

Não sou do meio do surf, mas não precisei ser para me lembrar que “crowd” era a frase usada para definir… bem, literalmente “multidão”, ou ainda, o público não-surfista de uma praia. Quanto menos banhistas, mais espaço para surfistas. Quanto mais medo, menos crowd.

Aquilo me soou insultivo. Eu me senti pessoalmente insultado, não apenas por ser meu cliente, mas pelo que aquela ideia representava. É lógico que, como um profissional de comunicação, eu já estou mais acostumado a ver comunicação voltada à geração de medo (Não é mesmo, imprensa? E vocês, políticos, como andam?), mas quando alguém colocou em palavras tão descaradas, algo machucou por dentro.

“Quanto mais medo, menos crowd” é a representação básica de um problema sério da humanidade. Uma frase que resume a maneira como o medo nos controla, como nós permitimos que ele nos controle, e como as pessoas podem utilizar isso a seu favor.

Não é novidade nenhuma que medo vende e evita vendas. Medo junta e medo separada. Medo gera obediência e desobediência. Dependendo onde você coloca o medo e como você faz com que ele se apresente, você tem um poder desprezível sobre as pessoas.

A questão maior é que, quando nós temos medo, do mesmo jeito que quando temos praticamente qualquer outro sentimento, nós tentamos explicá-lo, fazer com que seja algo que seja aceitável para nós, mesmo quando não há motivo algum para que seja. Repito: no medo reina o preconceito, geralmente disfarçado de conhecimento. Como nós confundimos a explicação de nosso medo com a explicação da realidade, nós nos abraçamos a ele como se fosse razão.

Quanto mais medo, menos crowd. Quanto menos razão temos para enfrentar o mundo, menos entramos no caminho dos que entendem a realidade e que querem se aproveitar de nossa ignorância.

Nem todos que pregam medo são mal-intencionados, mas eles não necessariamente são racionais.
Nem todos aqueles que reproduzem medo estão errados, mas eles não necessariamente são racionais.
Nem todos motivos para medo são irreais, mas medo nos afasta da racionalidade.

Ignorância leva ao medo, e o medo leva a uma ignorância ainda maior. Existem aqueles que sabem disso, e é nosso dever agir a favor da razão sempre que possível.

É claro, não precisamos temer esses que buscam a ignorância. Se fizermos isso, já começamos a errar. E o medo virá, invariavelmente o medo virá, se não de fora, de dentro. Mas é nessa hora que devemos superá-lo.