Bicha

Eu há alguns anos tento um experimento: eu deixei de usar os termos “bicha”, “viado” como xingamento, bem como outras derivações. Mas sabe de uma coisa? Eu cometi um erro.

Eu cometi um erro porque achei que estaria dando algum tipo de exemplo, mas todos que eu conheço que usam esses termos (mesmo aqueles que têm amigos gays, que se consideram pessoas inclusivas e evoluídas e LGBT-friendly e tudo mais) continuaram usando essas palavras. Eu achei que, pelo meu não-uso, as outras pessoas a meu redor não usariam. Mas não foi o caso.

Por isso, agora eu falarei diretamente, com carinho e ênfase especial para as pessoas que quero bem:

Usar “gay” como xingamento é um hábito bem atrasado.

Gente, acho que nós, como sociedade, podemos mudar esse hábito bem simples. Não adianta a gente se achar super legal porque estamos em 2016, somos inclusivos com a diversidade e ainda achar que “bicha” é xingamento.

Na boa? É homofobia mesmo.

Não gosta da palavra “homofobia”? Tudo bem, é preconceito.

Eu entendo o que vão falar. Eu entendo que todo mundo fala. Eu entendo que virou hábito: o cara que erra um gol no futebol é um “viado”, fulano devia ir “dar o cu na esquina” ou qualquer coisa assim. Mas hábitos podem ser mudados, especialmente quando prejudicam alguém. Se quiser, recomendo até um livro muito bom sobre mudar hábitos.

Se em qualquer momento que alguém cometer algum erro, ser indesejável ou gerar seu desgosto você relacionar isso à orientação dessa pessoa, você está dizendo que alguém que seja gay é errado, indesejável ou merecedor(a) de desgosto.

Isso sem falar em inúmeros outros problemas que são também machismo mesmo, especialmente quando o que entra em pauta é comportamento considerado “afeminado”.

Não adianta mandar o “tenho amigos que são gays”, ou falar que admira celebridades que são, ou falar que respeita as diferenças, se você vira a esquina e chama de “viado” o cara que cruzou o sinal vermelho.

É um nível de dissociação bem alto que chegamos. Imagina se você fizesse o mesmo com a etnia de alguma pessoa, ou com o fato de ela ter óculos, ou se a pessoa é careca, ou com a religião dela, ou qualquer outra coisa. Ou ainda, seguindo no exemplo, usar essas características como xingamento para outras pessoas, chamando o cabeludo de careca, o ateu de religioso ou o sem óculos de quatro-olhos.

Imagina gritar para o cara que furou o sinal vermelho: “Ô, quatro-olhos!”, ou “Tinha que ser careca!”, ou “Vai louvar Jesus, cristão do caralho!”

Não faz sentido, né, gente?

Por que é que esses exemplos não são xingamentos? Porque nós, como sociedade, entendemos que “careca” ou “cristão” são coisas que as pessoas podem ser, mas “gay”, não.

Pense: que outros adjetivos você colocaria no lugar do “viado!” que você gritou para o goleiro que não pegou a bola ou o cara que furou a fila da padaria? Não é difícil perceber o quão grave é a equivalência que estamos fazendo.

E antes que venha o argumento mais pífio de todos, a reclamação de “isso é extremismo de defesa das minorias” ou de “isso vai contra minha liberdade de expressão”, considere que isso afeta quem é hetero também. Eu já ouvi a vida toda que coisas que eu gosto eram “de viado” (e que, portanto, eu não deveria gostar delas), como roupas, filmes, livros, entre muitas outras. Quando eu era mais jovem, isso me afetava, pois eu tinha na cabeça a ideia de que precisava fugir desse rótulo. Com o tempo, eu me dei conta de que isso só minava minha própria liberdade e que, na prática, o único motivo real que eu tinha para evitar coisas “de viado” era para um homofóbico não me atacar.

“E se um cara der em cima de você?” Menos, gente. De dois um: ou você se acha irresistível, ou você está tão viciado na ideia de rejeitar gays que pensa que nenhum deles saberia lidar educadamente com a rejeição. Aliás, um exercício: pense se você não está projetando o que aconteceu aquela vez que você tomou um fora de alguém.

Digressões à parte, ganhei muito sendo eu mesmo e não, nunca tive problemas com isso. Aprendi que usar uma camisa roxa não me gera problemas. Nem colocar personagens gays em histórias que escrevo. Nem aprender a cozinhar, fazer poesia ou ver um filme em que dois homens se beijam.

Mas o ponto mais sério da conversa inteira é que ainda tem gente que morre, é agredido e perde direitos por ser gay. Estamos falando de adultos, de crianças, de leis proibitivas. Nem tudo no Brasil, mas nós também temos nossa parcela do problema, e ela não é pequena. Então eu reforço: parar de tratar a sexualidade alheia como tabu, como algo a ser perseguido ou transformado em piadas é um esforço pequeno que todo mundo consegue fazer, e que pode trazer resultados bem grandes.

Não espero mudar os hábitos de ninguém e sei que muitos não vão fazer isso por esse texto. Mas colocar ele em palavras vai servir para alguma coisa, nem que seja para me lembrar de, quando eu puder, eu cutucar algum amigo que sem querer ou por querer acaba falando que tem gente que é menos gente por ser quem é.